Voz da Igreja
Este artigo surgiu de um rascunho de resposta a um leitor anônimo que passou a nos enviar, insistentemente, comentários questionando acerca do motivo de o Papa João Paulo II ter pedido perdão pelos "erros da Igreja", em especial aos judeus, por conta do "comportamento da Igreja durante a Segunda Guerra Mundial" (sic). Esses comentários surgiram depois que um outro leitor anônimo ter insinuado que o Papa Pio XII era simpatizante do regime nazista.
Mesmo com diversas respostas, - minhas e dos leitores e colaboradores Lucas Henrique de Oliveira e "Católica", - demonstrando e comprovando (inclusive com referências e indicação bibliográfica) que essas acusações contra o Sumo Pontífice são improcedentes e caluniosas, continuaram os comentários repetidos, insistindo na mesma questão: então por que João Paulo II pediu perdão aos judeus?
Claro que o Papa Pio XII não foi conivente e nem omisso com relação aos crimes nazistas, como alegam os inimigos da Igreja de plantão, e comprovar este fato é muito simples: como lembrou Lucas, até importantes e famosos judeus da época o atestaram, como Albert Einstein, que declarou publicamente: “Só a Igreja Católica protestou contra o assalto hitlerista à liberdade”.
É fato histórico que, em resposta às calúnias, diversos sobreviventes do holocausto nazista, e inclusive destacados rabinos e autoridades israelitas, manifestaram-se em defesa de Pio XII. Não vou me aprofundar nesse tema específico neste artigo, mas adianto que são tantas as citações e referências históricas que provam a inocência e a coragem de Pio XII, na luta contra o nazismo e na proteção do povo judeu, que para tratar do assunto como se deve eu teria que produzir pelo menos uns dois outros posts bem extensos.
Entendemos que a questão que realmente confunde a cabeça de quem se apega a essas "picuinhas" é muito mais profunda do que saber se um Papa simpatizava com o nazismo ou não. - Mais adiante entraremos na essência da questão. - Por ora, vou deixar a indicação de um bom livro para os que estiverem honestamente interessados: estou falando da obra "Pio XII, o Papa dos Judeus", de Andrea Tornielli, João César das Neves e António Maia da Rocha (Editora Civilização), que pode ser encontrado na Livraria Ecclesiae . Quem quiser ler online um dossiê completo sobre o assunto, pode também acessar a página do jornalista e filósofo (dos bons) Olavo de Carvalho. Vale a pena.
Mas então, afinal, porque o Papa João Paulo II pediu perdão? Se Pio XII não errou, por que se desculpar? A pergunta parece fazer sentido. Vejamos: em primeiro lugar, é interessante lembrar que esse tal pedido de perdão de João Paulo II gerou controvérsia dentro da Igreja. Nem todos concordaram com essa atitude do Sumo Pontífice, e para falar a verdade, quem mais a festejou foram a mídia modernista e os adversários declarados da Igreja. Acontece que, se por um lado o Papa assumiu uma postura nobre e humildemente cristã, ele sem querer também deu munição aos caluniadores: esse pedido de perdão foi e será sempre explorado pelos que gostam de atacar a Igreja (prova disso são os comentários do leitor anônimo). Ora, só pede perdão quem se sente culpado.
O que falta é esclarecer que o pedido de perdão foi pelos erros humanos dos filhos da Igreja, e não por supostos erros da Igreja num sentido absoluto: a Igreja, enquanto condutora dos cristãos no mundo, enquanto Esposa e Cabeça do Corpo Místico de Cristo, não erra e nem pode errar, segundo a Promessa de nosso Senhor: "Sobre esta Pedra edifico a minha Igreja; as portas do Inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16,18); “Eis que estou convosco até o fim do mundo” (Mt 28,20).
Agora vamos esclarecer a questão do referido pedido de perdão do Papa, de uma vez por todas, antes de entrarmos naquele problema mais profundo e realmente essencial que mencionei antes. - Ocorre que, no início da Quaresma do ano 2000, pela primeira vez, todos os pecados do passado dos filhos da Igreja foram citados em conjunto, num documento intitulado "Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado", que agrupou as incorreções em blocos que abrangem toda a história da Igreja, incluindo o tópico # pecados contra os judeus.
Certo. E para que possamos entender qual é o sentido da culpa que o Papa está assumindo e pela qual está pedindo perdão, em nome dos Papas e clérigos antes dele, faço questão de reproduzir, abaixo, o trecho do documento que trata especificamente deste assunto. Você, leitor anônimo que insistiu na pergunta, e todos os que tiverem dúvidas a respeito, por favor, leiam com atenção:
"A Shoah (holocausto) foi certamente resultado de uma ideologia pagã, como era o nazismo, animada de um cruel anti-semitismo, a qual não só desprezava a fé mas também negava a própria dignidade humana do povo hebraico. Contudo, deve-se perguntar se a perseguição do nazismo nos confrontos com os judeus não foi facilitada por preconceitos antijudaicos presentes nas mentes e corações de alguns cristãos. Ofereceram os cristãos toda a assistência possível aos perseguidos e, em particular, aos judeus? (45) Sem dúvida que foram muitos os cristãos que arriscaram a vida para salvar e assistir os judeus seus conhecidos. Parece, porém, igualmente verdade que ao lado destes corajosos homens e mulheres, a resistência espiritual e a ação concreta de outros cristãos não foi aquela que se poderia esperar de discípulos de Cristo.(46) Este fato constitui um apelo à consciência de todos os cristãos, hoje, exigindo um ato de arrependimento,(47) e tornando-se um estímulo a que redobrem os seus esforços para serem 'transformados, adquirindo uma nova mentalidade' (Rm 12,2) e para manterem uma memória moral e religiosa da ferida infligida aos judeus. Nesta área, o muito que já foi feito poderá ser consolidado e aprofundado."
(Documento Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado - Comissão Teológica Internacional)
Interessante como a realidade é diferente do que pintam por aí, não é mesmo? Pois é... João Paulo II nunca pediu perdão pelos erros de Pio XII, muito menos pelo "comportamento da Igreja" durante a guerra... Ele declara, apenas e tão somente, que alguns cristão poderiam ter feito mais do que fizeram, e outros possivelmente pecaram por se deixarem levar por preconceitos antissemitas. Declara ainda que muito foi feito, mas que isso pode ser aprofundado. Somente isso.
A questão essencial
Respondida de uma vez a pergunta, encerro por enquanto o assunto Pio XII e Segunda Grande Guerra, porque, como falei, a questão que se impõe vai muito além disso. O pergunta que precisa ser respondida, para esclarecer de uma vez por todas as mentes das pessoas que fazem (e insistem) nesse tipo de pergunta, é a seguinte: afinal, como a Igreja pode ser santa, se a história está manchada pelos muitos pecados dos católicos, inclusive de Padres, Bispos e Papas? Essa dúvida aparece quando não se sabe exatamente o que Cristo afirmou nas palavras "As portas do inferno não prevalecerão contra ela" (Mt 16, 18).
Para facilitar a compreensão, cabe usar de uma conhecida analogia: conta-se que Napoleão, grande líder militar e vencedor de tantas batalhas, após ter mantido por longo tempo o Papa Pio VII prisioneiro em Fontainebleau, queria tomar a Igreja Católica sob sua tutela, para assim alcançar a hegemonia total na Europa. Com essa ideia em mente, redigiu uma concordata que entregou ao Secretário de Estado da época, Cardeal Consalvi. O imperador disse ao Cardeal que voltaria no dia seguinte e que queria o documento assinado.
Depois de ler a concordata, Consalvi informou Sua Santidade de que assinar o documento equivaleria a vender a Igreja ao Imperador da França e, por conseguinte, implorou-lhe que não o assinasse. Quando Napoleão voltou, o Cardeal informou-o de que o documento não havia sido assinado. O imperador começou então a usar um dos seus mais conhecidos estratagemas: a intimidação. Numa explosão de ira, berrou: “Se este documento não for assinado, eu destruirei a Igreja Católica Romana!”; mas Consalvi calmamente replicou: “Majestade, se os Papas, Cardeais, Bispos e Padres não conseguiram destruir a Igreja em dezenove séculos, como Vossa Alteza espera consegui-lo durante os anos da sua vida?”...
Fica claro o sentido das palavras do Cardeal Consalvi nesse episódio. Ele expõe um fato histórico incontestável: embora existam inumeráveis pecadores no seio da Igreja, ela subsistiu e subsiste através dos séculos da era cristã, por ser a Esposa de Cristo, Igreja santa e protegida pelo Espírito Santo! Nem todos os maus clérigos puderam fazer com que ela pereça, e nem poderão. Nem todos os inimigos da Igreja, tantas vezes enrustidos dentro dela mesma, serão capazes de fazê-la tombar! Há dois mil anos, toda sorte de falsos profetas e profetizas gritam que ela vai cair, que vai acabar, e todos eles sempre acabam confusos, humilhados, desementidos, um após o outro...
A Igreja sobrevive e continuará a sobreviver, mesmo com muitíssimos problemas. Precisamos entender que Cristo nunca disse que daria líderes perfeitos à sua Igreja; o Senhor nunca declarou que todos os membros da Igreja seriam santos e irrepreensíveis. Judas era um dos Apóstolos; São Pedro, o primeiro Papa, negou o Mestre por três vezes... E assim continuaram errando e derrapando os filhos da Igreja, em toda a sua história. Mas nosso Senhor disse que o inferno não prevaleceria contra ela e isto vem se cumprindo há dois milênios! O mal rodeia, atrapalha, interfere, maltrata, atenta, infiltra-se... Mas não prevalece! Não vence, não triunfa, não consegue fazer ruir a Igreja, e sempre foi assim.
Muito importante: A palavra “Igreja” tem dois sentidos: um sobrenatural e outro sociológico. Para os não-católicos, a Igreja é uma instituição meramente humana, instituição cuja história está carregada de crimes. É preocupante o fato de que o significado sobrenatural da palavra “Igreja” – a saber, a santa e imaculada Esposa de Cristo – seja totalmente desconhecido por tantas pessoas, e até por um alto percentual de católicos cuja formação religiosa vem sendo negligenciada desde o Concílio Vaticano II.
Por isso, quando o Papa pediu perdão pelos pecados dos cristãos no passado, muita gente se apressou em supor que ele estava assumindo que a Igreja, como um todo, é pecadora, falida, criminosa. – “A instituição religiosa mais poderosa da terra está finalmente admitindo as suas culpas", gritaram muitos, e alguns "viajaram" mais além, supondo que a própria existência da Igreja foi, em algum sentido, prejudicial à humanidade. Isso é um terrível e fatal engano.
Na realidade, é ela mesma, - a Igreja Esposa de Cristo, - a maior vítima dos pecados dos seus filhos; também é ela mesma que implora a Deus pelo perdão dos pecados destes filhos. É a Santa Igreja que implora a Deus que cure as feridas infligidas por aqueles que a traíram, muitas vezes em nome da própria Igreja. Por isso a Liturgia Católica é tão rica em orações que invocam o Perdão de Deus. As vítimas dos pecados podem (e devem) perdoar o mal que sofreram, mas não podem de forma alguma perdoar o mal moral em si.
A Santa Igreja Católica não peca, mas muitas vezes é a mãe dolorosa de filhos rebeldes, orgulhosos e desobedientes. Ela dá-lhes os meios de salvação, dá-lhes a conhecer o Caminho da Verdade, mas não pode forçá-los a viver os seus santos ensinamentos, a praticar o que ela ensina. Isto aplica-se a todo o Corpo Eclesial, em toda a sua história. Cristo foi traído por um dos seus Apóstolos e negado por outro, mas aí mesmo podemos ver a diferença fundamental entre santidade e rebeldia: o primeiro enforcou-se; o segundo arrependeu-se, chorou amargamente e depois assumiu a sua missão como Apóstolo e condutor da Igreja, dedicando-se de corpo e alma, até o fim da vida, pelo bem da Igreja.
A distinção entre o sentido sobrenatural e o sentido sociológico da Igreja deve ser continuamente enfatizada, pois fatalmente causa confusão quando não é explicada com clareza.
Os que se declaram católicos mas pisoteiam a doutrina católica são traidores, e isto deveria ser muito simples de entender. A Igreja deve ser julgada, obviamente, com base naqueles que vivem os seus ensinamentos, e não naqueles que os traem: isso é justiça.
A Profª Alice von Hildebrand (Hunter College da City University de New York) testemunha que um certo judeu ortodoxo, seu colega, lamentava o fato de muitos judeus se tornarem ateus, dizendo: “Se somente um judeu permanecer fiel, esse judeu é Israel”. Ora, o princípio está certíssimo, e o mesmo pode ser dito com relação à Igreja Católica: é evidente que apenas as pessoas fiéis ao ensinamento da Igreja é que podem falar em seu nome, e jamais aqueles que agem contra o que a Igreja tem como e prega como princípio. Ela deve ser julgada, portanto, de acordo com a santidade que muitos dos seus membros alcançam, não de acordo com os pecados e crimes dos que se rebelam.
Os pecadores, aliás, estão igualmente distribuídos pelo mundo, em todas as nações, religiões e instituições, e não são exclusividade dos católicos. Sendo assim, porque é a Igreja Católica o principal alvo dos inimigos da religião em geral? Vemos aí o cumprimento explícito de uma certa profecia de Jesus Cristo, contida no Evangelho segundo S. Lucas (21,17). Sim. Sempre fomos e seremos odiados por amor ao seu Nome.
Somente quem enxerga a Santa Igreja Católica (chamada santa cada vez que o Credo é recitado) com os olhos da fé compreende, com imensa gratidão, que a Igreja é a Santa Esposa de Cristo, sem ruga nem mácula, por causa da santidade do seu ensinamento, pois a Igreja está naquilo que ensina, e não nos que a traem. A Igreja é santa porque aponta o caminho da Vida Eterna e porque é através dela que temos os meios da Graça, ou seja, os Sacramentos.
O pecado é sempre uma realidade medonha, e os pecados cometidos por aqueles que se dizem servos de Deus são especialmente repulsivos. Nunca serão excessivamente lamentados, mas devemos lembrar sempre que, apesar de muitos membros da Igreja serem, infelizmente, cidadãos da Cidade dos Homens e não da Cidade de Deus, a Igreja permanece santa.
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Parte deste artigo é baseado em texto de Alice von Hildebrand, Professora Emérita de Filosofia do Hunter College da City University de Nova York. É autora de diversos livros, entre os quais os mais recentes são: “The Soul of a Lion” (Ignatius Press), sobre o seu falecido marido, o célebre filósofo Dietrich von Hildebrand; “The Privilege of Being a Woman” (Sapientia Press); e “By Love Refined” (Sophia Institute Press).
Fonte: Homiletic and Pastoral Review, disponível em:
http://catholic.net/rcc/Periodicals/Homiletic/2000-06/vonhildebrand.html. Acesso em 3 jun 2011
Site: Voz da Igreja
Editado por Henrique Guilhon
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