Estas observações já elucidam de algum modo a mentalidade dos medievais referente à salvação dentro e fora da Igreja.
1.5. Veio o séc. XVI com as suas grandes descobertas geográficas ... Estas puseram os cristãos em contato com grande número de povos até então desconhecidos; a existência de tantas e tantas gerações de homens que até aquela época ainda não tinham sido evangelizados, levou paulatinamente os pensadores cristãos a focalizar atentamente a questão de sua salvação eterna: poder-se-ia aplicar, sem mais, a esses povos o critério antigo e, em consequência, asseverar que, pelo fato de não haverem pertencido visivelmente à Igreja, estavam para sempre rejeitados por Deus? A essa conclusão parecia opor-se, entre outros argumentos, a índole honesta e reta de muitos pagãos; ademais, alguns mestres cristãos eram propensos a julgar que o sacrifício do Filho de Deus na cruz ficaria vão, se tão grande multidão de almas, apesar de tão rica Redenção, se fosse perder eternamente.
As surpresas decorrentes deste novo panorama, manifestado na Ásia, na África e na América, eram acrescidas pela nova situação religiosa da Europa mesmo, que até o séc. XVI fora homogeneamente cristã. Eis que, desde a cisão introduzida pelo Protestantismo (1517), os católicos viam a seu lado famílias e populações inteiras que não pertenciam à Igreja e que, desde muito talvez, só conheciam a Reforma e suas seitas. Mais ainda : nos séc. XVIII e XIX, a face religiosa da Europa foi ulteriormente modificada pelo indiferentismo do pensamento, a ignorância religiosa e a consequente descristianização que invadiram as massas humanas. — Poder-se-ia julgar sumariamente que estavam de má fé tantos e tantos homens? Cada um daqueles que viviam fora da Igreja (protestantes ou simplesmente homens ignorantes, mal formados em questões religiosas) estaria realmente lutando contra os ditames da sua consciência, obstinando-se culpadamente contra a luz de Deus e as inspirações da graça? Não haveria muita gente que com sinceridade poderia estar julgando que não devia aderir à Santa Igreja?
Essas interrogações foram calando na mente dos pensadores católicos. Assim incitados, os teólogos aprofundaram o sentido da fórmula «Fora da Igreja não há salvação», de modo que hoje em dia a doutrina católica sobre o assunto se apresenta mais matizada do que antigamente; ela compreende vários itens, correspondentes à índole complexa do problema, itens que vão abaixo discriminados.
2. O sentido genuíno da fórmula
2.1. O axioma «Fora da Igreja não há salvação» há de ser entendido à luz das distinções seguintes :
1) Há um modo visível de pertencer à Igreja e nela obter a salvação: é o que se dá pela profissão do símbolo de fé e a participação dos sacramentos, principalmente do Batismo e da Eucaristia. Tal é o modo normal de pertencer à Igreja: esta, sendo uma sociedade visível, é natural que os seus membros se denunciem por certas notas visíveis e características. Consequentemente entende-se que é pela adesão explícita e pública à Igreja de Cristo que os homens se devem, em condições ordinárias, encaminhar para a salvação eterna.
2) Contudo pode também alguém pertencer à Igreja de modo invisível, ou seja, pelo desejo de ser membro da Igreja. Tal desejo, por sua vez, pode ser:
a) desejo explícito. Supõe-se, no caso, que alguém tenha conhecimento direto de Cristo, da Igreja (que o prolonga no tempo) e da porta de entrada na Igreja (que é o Batismo)...; dado que tal pessoa se disponha a receber o Batismo, mas, por motivo independente de sua vontade, não chegue a ser batizada, diz-se que é membro da Igreja por ter o desejo explícito de Batismo ou o Batismo de desejo. Já S. Ambrósio professava esta doutrina na oração fúnebre de Valentiniano (citada atrás).
De resto, o conceito mesmo de Justiça Divina exige, seja válido para a salvação o desejo do Batismo, desde que não se torne possível receber o próprio sacramento: o Senhor não pode condenar uma alma que Lhe esteja unida pela fé e pelo amor, mas à qual não é dado cumprir tudo que ela em sua fidelidade desejaria cumprir.
Contudo não somente o desejo explícito é capaz de agregar alguém à Santa Igreja... Hoje em dia os teólogos reconhecem igual eficácia ao que chamam
b) desejo meramente implícito. Como entender isto ?
Admita-se que alguém ignore por completo Cristo e a Igreja ou que só os conheça de maneira inadequada, de modo a não poder sequer conceber a ideia de que a Igreja seja portadora da verdade. Em consequência, vive de inteira boa fé, aderindo a um credo religioso não católico, cujas prescrições procura seguir à risca. Essa pessoa é sinceramente movida por um único desejo: o de se aproximar mais e mais de Deus. Se tivesse evidência de que o caminho para Deus é outro que não o seu, abraçaria imediatamente essa nova vereda. Diz-se então que tal indivíduo adere à Igreja de Cristo sem o saber, pois que a Igreja representa realmente o objeto de suas aspirações; se ele simplesmente a conhecesse ou se a conhecesse mais autenticamente, prestar-lhe-ia sua adesão explícita.
Ora uma situação dessas pode ser até mesmo a de um adversário da Igreja: com efeito, pode acontecer que um homem muito reto sinta que sua consciência se revolta contra a doutrina do primado de São Pedro, por exemplo; uma série de equívocos e preconceitos faz-lhe ver apenas um aspecto dessa doutrina, dando-lhe a crer que se trata de desvirtuamento do Evangelho. Pois bem; se tal pessoa é sincera e humilde, ressentindo-se apenas de falta de conhecimentos claros sobre o assunto (sem que tenha culpa da sua ignorância), tal pessoa é membro invisível da Igreja visível de Cristo; está assim a caminho da salvação eterna, e essa salvação lhe será dada por intermédio da Igreja (da Igreja hierárquica, chefiada por Pedro, que ela rejeita), pois a Igreja, prolongando Cristo na terra, é o canal único pelo qual Deus comunica aos homens toda e qualquer graça de salvação.
Destarte se vê que muitas e muitas almas que estejam de inteira boa fé fora da Igreja visível, pertencem invisivelmente à Igreja sem o saber e sem que a própria Igreja o saiba. A boa fé, no caso, não desculpa propriamente a pessoa de estar fora da Igreja, mas, antes, faz que tal pessoa não esteja fora da Igreja: pertence, sim, invisivelmente à Igreja.
Por conseguinte, o sentido do adágio «Fora da Igreja não há salvação» vem a ser: a salvação só é concedida dentro da Igreja ou por intermédio da Igreja.
Merece atenção o fato de que o Papa Clemente XI, em 1713, condenou a proposição de Quesnel, famoso jansenista : “Fora da Igreja não é concedida graça alguma”. — Extra Ecclesiam nulla conceditur pratia» (Denzinger, Enchiridion 1379).
A intenção do Pontífice, ao proferir a condenação, era a de inculcar a seguinte proposição: fora da Igreja não se pode dizer que não há graça sobrenatural; tenha-se por certo, porém, que toda graça aí existente é derivada da Igreja e voltada ou tendente para a Igreja.
2.2. A doutrina acima exposta é não raro apresentada sob a forma da distinção seguinte: os que professam a verdadeira fé e segundo ela vivem, pertencem ao corpo da Igreja. Quanto aos que professam um credo errôneo com sinceridade absoluta ou com toda a boa fé, pertencem à alma da Igreja.
Tal distinção, porém, não é oportuna, porque na verdade não há corpo vivo sem alma; propriamente quem pertence ao corpo, pertence à alma da Igreja. Melhor é falar de «modo visível» e «modo invisível» de pertencer à Igreja.
2.3. Ao passo que o desejo explícito do Batismo desde os primeiros séculos foi tido como suficiente para salvar quem não possa receber o próprio sacramento, a eficácia do desejo implícito (nos termos que acabamos de expor) só em época relativamente recente foi reconhecida pelos teólogos.
Pode-se dizer que foi o Papa Pio IX quem em 1854 deu autoridade a esse novo ponto de vista. Assim se exprimia Sua Santidade:
«É preciso considerar como verdade de fé que, fora da Igreja apostólica romana, ninguém pode ser salvo: que esta é a arca única da salvação e que os que nela não tiverem entrado, perecerão pelo dilúvio.
E é preciso igualmente ter por certo que os que estão na ignorância da verdadeira religião, disto não têm culpa aos olhos do Senhor, caso essa ignorância seja invencível. Quem, porém, seria tão presunçoso que ousasse indicar os limites de tal ignorância, dados os caracteres e as diversidades dos povos, das regiões, dos espíritos e de inumeráveis outros fatores? Não há dúvida, quando, libertados dos vínculos do corpo, virmos a Deus tal como é, compreenderemos quão estreito e maravilhoso é o liame que une a Misericórdia e a Justiça divinas. Mas, enquanto vivemos na terra, acabrunhados por este peso mortal que abate a alma, professemos firmemente que só há um Deus, uma fé, um Batismo (Ef 4,5); indagar além disto, já não é lícito. De outro lado, na medida em que a caridade o requer, formulemos preces assíduas para que todas as nações, de qualquer das partes do mundo, se convertam a Cristo; e trabalhemos com todas as nossas forças para a salvação comum de todos os homens. Com efeito, o braço do Senhor não se tornou exíguo (Is 50,2), e jamais os dons da graça celeste faltarão aos que desejam e pedem, com um coração reto, ser reconfortados por Sua luz» (Denzinger 1647s).
É de notar que nessa alocução o Sumo Pontífice frisa bem a dificuldade de se estabelecerem os limites da boa fé e da culpabilidade nos indivíduos; não há para isso um critério universal, aplicável aos homens de todos os tempos e todas as regiões, mas o julgamento exato das consciências é obra de Deus só. De resto, já os teólogos anteriores a Pio IX faziam a mesma advertência: Suarez (+1617) e os autores de Salamanca (séc. XVIII), por exemplo, julgavam que, mesmo num pais onde a fé católica é professada sem oposição, pode haver hereges ou infiéis que estejam fora de toda influência do Catolicismo e, por conseguinte, não concebam dúvida sobre a veracidade da sua seita.
É de crer que, nas seitas heréticas é cismáticas, a massa do povo, pouco instruída, segue de boa fé seus pastores religiosos e não se propõe o problema da «verdadeira religião». Entre os estudiosos é mais fácil surgirem dúvidas sobre a autenticidade de sua seita, dúvidas que naturalmente tiram a boa fé; todavia Newmann podia afirmar que vivera muitos anos como erudito teólogo anglicano, sem jamais ter concebido a mínima hesitação sobre a veracidade de sua religião. Diz-se que a quase totalidade dos hereges e cismáticos que não se ocupam com a Igreja Católica, está de boa fé.
Perspectivas muito consoladoras são essas... Nem se poderia conceber que a verdade fosse outra. Com efeito, se Cristo veio ao mundo para salvar e não para condenar (cf. Jo 3,17), a existência da Igreja visível de Cristo não poderia ser motivo de condenação para a maioria do gênero humano, que talvez não lhe pertença visivelmente, mas certamente lhe pertence invisivelmente.
2.4. A história contemporânea, de resto, contribuiu para ilustrar e corroborar as vistas largas da teologia no tocante à salvação fora da Igreja visível.
Com efeito, em abril de 1949, o Pe Reitor de «Boston College» (U. S. A.) despediu três professores leigos do seu educandário por ensinarem obstinadamente que, para ser salvos, todos os homens têm que se tornar membros professos da Igreja Católica. O Pe. Leonardo Feeney S. J., que então dirigia a Casa dos Estudantes Católicos junto à Universidade Harvard, de Cambridge (U. S. A.), resolveu tomar publicamente a defesa dos três citados professores, reafirmando a sentença teológica estreita dos mesmos. Frequentemente admoestado a rever tal ponto de vista errôneo, Feeney não se rendeu, pelo que foi finalmente excomungado aos 13 de fevereiro de 1953. Interessa-nos frisar aqui o fato de que o S. Ofício de Roma se aproveitou do ensejo para dirigir uma carta ao Cardeal Cushing, arcebispo de Boston, expondo o autêntico pensamento da Igreja sobre o assunto (o documento datado de 8 de agosto de 1949 só foi tornado público em 1952, poucos meses antes da excomunhão de Feeney. Eis um dos trechos mais salientes de tal carta:
«Entre os mandamentos de Cristo não é de pouca importância aquele que preceitua, nos incorporemos pelo Batismo ao Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja, e prestemos nossa adesão a Cristo e ao seu Vigário, (Vigário) pelo qual o próprio Cristo na terra governa, de modo visível, a Igreja.
Por conseguinte, não se salvará quem, consciente de que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, não obstante se recuse a se lhe submeter e denegue obediência ao Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra...
Todavia, para que alguém possa obter a salvação eterna, não se requer sempre que seja atualmente incorporado à Igreja como membro, mas é necessário, ao menos, que lhe esteja unido por desejo e voto.
Este desejo, porém, não deve ser sempre explícito, como ele o é nos catecúmenos. Dado que o homem esteja envolvido em ignorância invencível, Deus aceita igualmente o desejo implícito, o qual é assim chamado por estar incluído naquelas boas disposições de alma que levam alguém a querer conformar sua vontade com a vontade de Deus.
Estas verdades são claramente ensinadas na Carta Dogmática «A respeito do Corpo Místico de Jesus Cristo», publicada pelo Sumo Pontífice o Papa Pio XII aos 29 de junho de 1943...
No fim dessa Encíclica, o Sumo Pontífice, movido de profundo afeto, convida à unidade os que não pertencem ao Corpo da Igreja Católica; menciona então «os que por certo e inconsciente desejo e almejo estão voltados para o Corpo Místico do Redentor»; estes tais, Sua Santidade de modo nenhum os exclui da salvação eterna; afirma, porém, que se acham em condições «nas quais não podem estar certos de sua salvação eterna... visto que permanecem privados dos muitos dons e auxílios celestiais dos quais somente na Igreja Católica se pode usufruir».
Com estas sábias palavras, tanto reprova aqueles que excluem da salvação eterna os que, por desejo implícito apenas, estão unidos à Igreja, como rejeita os que falsamente asseveram que os homens podem ser salvos tão bem numa religião como em qualquer outra...» (Carta publicada em «The American Ecclesiastical Review» 127 [1952] 307-315).
Como se vê, o axioma «Fora da Igreja não há salvação», devidamente entendido, está longe de significar estreiteza e mesquinhez. Ele não é mais exigente do que a Verdade é exigente!
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