Côn. Henrique Soares da Costa
Vou apresentar alguns comentários, salientando os vários pontos que merecem mais atenção. É importante compreender que o comentário será mais teológico que exegético. Ei-los:
(1) “No terceiro dia, houve núpcias em Caná da Galiléia”. São João inicia seu evangelho narrando, dia após dia, a primeira semana do ministério público de Jesus (cf. 1,29.35.43; 2,1). Com isso ele já quer transmitir uma idéia importante: Jesus vem para recriar todas as coisas. A sua ação recapitula a ação do Pai ao criar tudo. Neste sentido, vale a pena recordar a primeira leitura da Vigília da Páscoa - a criação - e a oração que a Igreja faz logo após a leitura: “Ó Deus, admirável na criação do ser humano, e mais admirável ainda na sua redenção...” Depois, o Evangelista monta a narração de tal modo a terminar esta semana inaugural com a expressão “terceiro dia”. Oral, para os cristãos, “terceiro dia” tem um sentido claro: é o Dia da Ressurreição! Pois bem, “no Terceiro dia houve núpcias”... que núpcias? As de Cristo com a Igreja: “Estão para realizarem-se as núpcias do Cordeiro, e sua esposa (a Igreja) já está pronta: concederam-lhe vestir-se com linho puro, resplandecente” (Ap 19,7s). Então, narrando as bodas de Caná o Evangelista está pensando na ressurreição, quando Cristo desposou sua Igreja.
(2) É interessante também observar que o texto inicia com a ordem natural: a Mãe de Jesus (v. 1), Jesus (v. 2) e seus discípulos (v. 2). Ao final, veremos que esta ordem será invertida: Jesus, sua Mãe, seus irmãos e seus discípulos (v. 12). Depois que Jesus “manifestou a sua glória” (v. 11), a ordem é invertida e ele é nomeado em primeiro lugar.
(3) O vinho que faltou no casamento tem um significado importante. O casamento é símbolo da aliança de Deus com Israel: “Como um jovem desposa uma virgem, assim te desposará o teu Edificador. Como a alegria do noivo pela noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti” (Is 62,5); “Meu Amado é meu e eu sou dele” (Ct 2,16; cf. Os 2; Is 1,21-26; 5,1-7; 49; 54; 62,1-9; Ez 16; Br 4-5). O vinho é símbolo da alegria messiânica, símbolo também do Espírito Santo, que embriaga e alegra o coração (cf. At 2,15s; Ef 5,18). Considerando tudo isso, é como se a Mãe de Jesus olhasse toda a antiga aliança, todo o povo de Israel, a quem o Senhor desposou pela aliança do Sinal, e dissesse: “Eles não têm mais vinho” (v. 3). Isto é, falta-lhes o Espírito; a antiga aliança esgotou-se pelas infidelidades de Israel: “Onde está Aquele que os fez subir do mar, o Pastor do seu rebanho? Onde está Aquele que pôs o seu Espírito santo no seio do povo? Há muito que somos um povo sobre o qual não exerces o teu domínio, sobre o qual não se invoca o teu nome” (Is 63,11b.19; cf. Ez 37,1-14). Deus tinha prometido que, com a vinda do Messias (= Ungido pelo Espírito), seria selada uma nova aliança com Israel e o povo de Deus teria uma nova efusão do Espírito (cf. Jl 3,1-5). Pois bem, em sentido profundo, é este vinho que falta a Israel, o vinho bom e novo do Espírito, que somente o Messias pode trazer.
(4) A resposta de Jesus à Mãe deve ser bem compreendida:
(a) Primeiramente, olhando do ponto de vista da cena, simplesmente, é necessário observar que Jesus se coloca num plano diverso do de Maria: ela fala de algo prático, imediato, concreto; ele responde pensando num sentido figurado, teológico: a “hora”, a qual se refere é a hora da morte e ressurreição, hora da glória, que somente aparecerá de modo claro ao final, na Páscoa, “hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1s), quando, então, ele mesmo dirá: “Pai, chegou a hora. Glorifica teu Filho...” (Jo 17,1s). Nesta hora, a Mãe de Jesus estará novamente presente (cf. Jo 19,25ss).
(b) A resposta de Jesus não é um desacato. “Que queres de mim. Mulher?” quer simplesmente marcar a distância de Jesus em relação à cena familiar: aqui não entram os direitos “naturais” de mãe. A hora dele somente pode ser determinada pelo Pai! O apelativo Mulher é importante. Trata-se da Mulher do Gênesis (cf. 3,15s), da cruz (cf. Jo 19,25ss) e do Apocalipse (cf. 12,1ss). Este Mulher simboliza a Filha de Sião (cf. Is 12,6; 54,1; Sf 5,14; Zc 2,14), imagem da Igreja, que será desposada na ressurreição (cf. Ap 19,7s), quando Jesus, o noivo, revelar sua glória e desposar sua Igreja (cf. Ef 5,32s.25; Mt 22,1-14; 25,1-13; 2Cor 11,1-4; Ap 12, 21,2). A Virgem Maria, na nova aliança, tem um lugar determinado por Deus. Ela é a Mulher, Nova Eva, imagem da Igreja, Mãe do Senhor a quem Jesus entregará seu discípulo amado e a quem o discípulo amado deverá sempre levar para sua casa. Nesta cena de Caná, ela é a Igreja-Noiva, a Mulher, esposa do Cordeiro, do Noivo que vem desposar a noiva, Israel-Igreja (cf. Jo 3,29)! É por isso que o Evangelista não diz o nome dos noivos. As núpcias são as núpcias pascais, o Esposo é o Cristo, a Esposa é a Mulher-Igreja, representada por Maria.
(5) Tanto a resposta de Jesus não é grosseira nem uma recriminação, que a Mãe vai adiante: “Fazei tudo o que ele vos disser” (v. 5). É uma palavra de profundo sentido espiritual, que ainda hoje ecoa aos ouvidos e no coração da Igreja. É tudo quanto a Virgem tem para dizer aos discípulos do seu Filho!
(6) Importante também é a referência às talhas de pedra:
(a) elas serviam para os ritos de purificação da religião judaica. Vão perder a utilidade pois, com a ressurreição, a nova aliança chegará e os velhos ritos do Antigo Testamento estarão superados. Elas transbordarão não mais a água da Lei de Moisés, mas o vinho novo do Espírito Santo, dom pascal do Ressuscitado à sua Igreja.
(b) as talhas contêm “duas a três medidas”. São cerca de quarenta litros para cada uma. É um exagero. João aqui quer aludir ao dom do Espírito, derramado em abundância: “ele dá o Espírito sem medida” (Jo 3,34). É este o “bom vinho” (v. 10) , vinho do Espírito, que Deus guardou para o final da festa, para a nova aliança! Esta idéia da abundância do Espírito, que é sem medida, aparece também no fato de encherem as talhas “até à borda” (v. 7).
(7) Assim, a água da antiga Lei dá lugar ao Espírito da nova aliança. O Espírito é a nova lei, lei do Amor, derramado no nosso coração (cf. Rm 5,5). Tudo como fruto das núpcias do Cordeiro, quando sua esposa, a Igreja, enfeitou-se de puro linho (cf. Ap 19,7s).
(8) E a conclusão, que poderíamos exprimir deste modo: “Ao terceiro dia, houve núpcias... Jesus manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele”. Note-se que a alusão à ressurreição é claríssima.
São estes alguns dos pontos a serem salientados nesta belíssima passagem, que João descreve de modo tão teologicamente rico.
Site: Dom Henrique
Por Henrique Guilhon
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