Poucos dias após a renúncia de Bento XVI e a eleição do Papa Francisco, o seriado "Evidências", produzido pela TV Novo Tempo (ligada à igreja Adventista, contando com o apoio cultural da sua Casa Publicadora Brasileira [30:18]), dedicou todo um programa à "História do Papado"[0], apresentado e narrado pelo "teólogo e arqueólogo" Rodrigo Silva [00:34 / 30:13] que, segundo afirmava, pretendia "contar um pouco da história dos Papas" [01:27], expondo as coisas segundo "fatos históricos, bíblicos e proféticos" [27:27].
Continuando
9º) Houve disputa acirrada entre os Patriarcas para saber quem teria a autoridade e a hegemonia sobre os demais. Venceu o bispo de Roma por diversos fatores, entre eles: seu sucesso em resistir a várias heresias e movimentos; facções rivais que apelavam para o bispo de Roma para resolver suas dissidências teológicas [16:17].
Não é verdade que houve "disputa acirrada" entre os Patriarcas, pois desde os primeiros tempos do Cristianismo estabeleceu-se naturalmente a seguinte ordem honorífica:
1º) Roma (em razão de ser a última Sé de Pedro)
2º) Alexandria
3º) Antioquia
A autoridade da Igreja de Roma vem, com efeito, desde os tempos de Pedro, como vimos mais acima (quando falamos de Clemente I e Vítor I), e era reconhecida por toda a Igreja, p.ex.:
- "Inácio, (...) para a Igreja que preside, na região dos romanos, merecedora de Deus, de honra, de bênção, de elogio, de sucesso, de santificação, porque preside o amor. (...) Vós não invejastes ninguém, mas a outros ensinastes. Eu só desejo que aquilo que foi ordenado nas tuas instruções possa permanecer em vigor" (Inácio de Antioquia, +107; Carta aos Romanos 1,1; 3,1).
- "A Sé dos Apóstolos [Pedro e Paulo] foi informada por vossos delegados [do Egito] que alguns de nossos irmãos bispos estão sendo expulsos de suas igrejas e sés, privados de seus bens, e chamados a juízo, sendo, ainda por cima, destituídos e maltratados. Isto é um absurdo, já que as constituições dos Apóstolos e de seus sucessores, assim como os estatutos dos imperadores e a regulamentação das leis, assim como a autoridade da Sé dos Apóstolos proíbem-no fazer" (Urbano I de Roma, +230; Carta aos Bispos do Egito 1,1).
- "Atrevem-se estes (=cismáticos) a dirigir-se à cátedra de Pedro (=Roma), a esta Igreja principal de onde se origina o sacerdócio (...), esquecidos de que os romanos não podem errar na fé" (Cipriano de Cartago, +258; Carta 59).
- "Sabemos que Cornélio foi eleito, por Deus Onipotente e por Cristo Nosso Senhor, Bispo (=Papa) da Santa Igreja Católica; confessamos o nosso erro: fomos vítimas de uma impostura (=a do antipapa Novaciano); fomos envolvidos por gente de fala perversa e sorrateira. Na verdade, ainda quando parecia que tínhamos alguma ligação com o homem cismático e herege (=Novaciano), nosso coração, no entanto, estava sempre na Igreja, porque não ignoramos que há um só Deus e um só Senhor Jesus Cristo, a quem confessamos; um só Espírito Santo; e que só deve haver um [único] Bispo (=Papa) na Igreja Católica" (Fábio de Antioquia, +260; Carta "Quantam Sollicitudinem").
Uma "tentativa de disputa", podemos assim dizer, surgiu quando o Império mudou a sua capital de Roma para Constantinopla. Como esta cidade nunca recebera a pregação de nenhum Apóstolo, aventou-se entre as autoridades civis e religiosas locais a ideia de que, sendo ela "a nova Roma", deveria por consequência ser honrada também com um importante Patriarcado, o que foi obtido pelo cânon 3 do Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381):
- "O bispo de Constantinopla terá o primado de honra depois do Bispo de Roma, porque Constantinopla é a Nova Roma" (cânon 3).
Porém, seus patriarcas - estes sim -, por orgulho, não se contentaram com isto e quiseram obter ainda mais poder, igualando-se à Sé de Pedro (estabelecida na "antiga Roma") e, se possível, até usurpar-lhe o lugar.
Assim, no Concílio Ecumênico de Calcedônia (451), por intromissão do Imperador, o cânon 28 estabelecia à Sé de Constantinopla os mesmos privilégios da Sé da "antiga Roma" e previa ainda um primado sobre o Oriente, muito embora reconhecesse que continuaria na segunda posição, logo depois da Sé de Roma. O Papa Leão I, porém, rejeitou o cânon, pois embora Constantinopla "se contentasse" com "o segundo lugar teórico", na prática isto lesava as prerrogativas das outras Sés patriarcais, além de poder constituir, no futuro, um perigoso precedente que daria a Constantinopla autonomia e independência.
O que importa aqui é que o cânon 28 nunca foi aprovado pelos Papas e, desta forma, jamais vigorou na Igreja.
10º) O Papa assumiu para si o título pagão de "Pontifex Maximus" ou "Sumo Pontífice", anteriormente adotado pelo imperadores como sacerdote do deus Mitras e que significa "o principal construtor de pontes entre os homens e o deus sol" [24:27].
Os títulos adotados pelos imperadores romanos eram:
• "Princeps Senatus", "Príncipe do Senado": líder político-parlamentar do Senado;
• "Pontifex Maximus", "Pontífice Máximo": máxima autoridade religiosa do Império, independentemente do deus cultuado (não só o deus Sol!).
Ora, qualquer lider ou representante supremo de uma religião pode legitimamente adotar para si ou ser chamado por terceiros com o título de "pontífice máximo", "sumo pontífice", "príncipe dos sacerdotes", "sumo sacerdote" (como encontramos na Bíblia!) ou qualquer outro título que designe sua função suprema de liderança. São expressões totalmente intercambiáveis entre si. A sra. Ellen Gould White, por exemplo, poderia, indubitavelmente, ser chamada de "Pontífice Máxima" dos Adventistas do 7º Dia, dada a imensa importância e influência que exerceu (e continua exercendo) sobre eles, a ponto de suas falsas profecias e informações equivocadas continuarem a ser defendidas com unhas e dentes por estes.
Quanto ao uso do título de "Pontifex Maximus" pelos Papas (não sendo, porém, um título oficial), inexiste qualquer prova documental de que o tenham feito antes do século XV, excluindo-se, portanto, qualquer ligação com o título que foi usado oficialmente pelos imperadores romanos até o ano de 376 d.C.
11º) Em 380, o imperador Teodósio proclamou o Catolicismo religião oficial do Império, dando tanta força ao Papa que, ironicamente, acabou sendo excomungado por este e obrigado a curvar-se às suas exigências [17:36].
De fato, Teodósio tornou o Cristianismo (o Catolicismo, evidentemente, já que naquela época o Protestantismo - inclusive o Adventismo - nem sonhava em existir!) a religião oficial do Império.
Ironia, porém, é o programa ter afirmado que vai "contar um pouco da história dos Papas" [01:27] e expor as coisas segundo "fatos históricos, bíblicos e proféticos" [27:27] e depois CRIAR um factóide: a excomunhão do imperador Teodósio I pelo Papa!!!
Teodósio governou o Império (ocidental e oriental) de 378 a 395; durante seu reinado, passaram pelo trono de Pedro os Papas Dâmaso I (366-384) e Sirício (384-399). Contudo, NENHUM dos dois excomungou o imperador!!!
Na verdade, o roteirista do programa confundiu alhos com bugalhos e atribuiu erroneamente aos Papas uma excomunhão que Teodósio sofreu de Ambrósio de Milão, seu bispo diocesano. Teria pelo menos essa excomunhão sido injusta, para podermos dar "alguma razão" ao programa? Vejamos...
Por volta do ano 388, Teodósio publicou um decreto que condenava à morte os pecados contra a natureza (pederastia, sodomia etc.), até então normalmente admitidos pelo mundo greco-romano. Aplicando a lei na Tessalônica, o chefe da infantaria, o godo Buterico, encarcerou um auriga de circo que gozava de grande popularidade e riqueza no local. Estourou então uma revolta popular que, associada ao ódio pelos soldados bárbaros contratados pelo imperador, culminou com o assassinato de Buterico. Em resposta, Teodósio ordenou que fossem mortos todos os tessalonicenses que se reunissem para os espetáculos do circo, o que acabou resultando no massacre de 300 a 7.000 pessoas (os números variam conforme as fontes). Ao tomar conhecimento disso, Ambrósio excomungou o Imperador, o qual, para ser perdoado e readmitido à comunhão precisou passar por uma rigorosa penitência que durou 8 meses.
Não a toa, o próprio Teodósio confessou mais tarde: "Sem dúvida, Ambrósio me fez compreender pela primeira vez como que deve ser um Bispo"; e no leito de morte, ainda confiou a Ambrósio os seus filhos... Sinal de que reconheceu o seu excesso.
Será que o Adventismo discorda dessa punição eclesiástica ao imperador cristão que agiu desproporcionalmente, tal como um bárbaro? Quem, afinal, está ao lado do poder então? O Catolicismo ou o Adventismo?
12º) Quando em 475 o Império Romano Ocidental caiu nas mãos dos bárbaros, alguns desses povos invasores já eram convertidos ou ao menos simpatizantes do Cristianismo; por isso, pouparam a instituição cristã e lhe deram certa autonomia [14:16].
Outra meia-verdade, pois os bárbaros que invadiram o Império eram de duas espécies: bárbaros pagãos e bárbaros arianos (que não criam na Santíssima Trindade). Lançou-se então um desafio duplo para a Igreja Católica, que cria (e crê) na Trindade (como boa parte dos Adventistas, aliás!).
Por que a Igreja, sob a unidade proporcionada pelos Papas, saiu vencedora nesse período difícil e conturbado? Deixemos que o próprio Jesus responda:
- "E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. (...) Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo" (Mateus 16,18; 21,19-20).
Seguir, confiante, a missão apontada pelo Divino Fundador... Simples assim.
13º) Em meados do séc. VIII, em meio a uma grande contenda política, o Papa apresentou um documento chamado "Constitutum Donatio Constantini" (=Doação de Constantino), em que supostamente o imperador Constantino I doa ao Papa Silvestre I e seus sucessores, "os seus títulos, as suas heranças, as suas terras, tudo o que ele possuía", de modo que "o Papado seria então oficialmente herdeiro do imperador Constantino". Embora hoje a maioria dos historiadores considerem falsa a Doação de Constantino, na época convenceu e a Roma católica passou a ser dona de grandes extensões de terra em toda a Itália [18:26].
O programa reconhece que o documento é falso. Ponto pacífico, pois a Igreja Católica também o afirma.
Na verdade, o domínio da Igreja sobre os territórios cobertos pela "Doação de Constantino" era legítimo, mas por outras razões: quando os lombardos ameaçaram invadir Roma e região, o Papa Estêvão II pediu socorro ao povo franco, governado por Pepino o Breve, sendo atendido por este. Posteriormente, o mesmo Pepino conferiu ao Papa o título de "Soberano do Patrimônio de São Pedro", o que veio dar início aos chamados "Estados Pontifícios", em 756 d.C.
Portanto, a posse dessas terras pela Igreja não foi efeito de trapaça, até porque, além da "Donatio" nunca ter sido citada até o século VIII, já em pleno século IX sua autenticidade era afastada pelo imperador Oto III; ademais, toda vez que era mencionada nos debates medievais, era quase sempre tida como falsa, sendo por isso mesmo rejeitada.
Continua
Título Original: "A História do Papado": Uma Refutação a um Programa de TV Adventista
Foto: Web
Site: Apologistas Católicos
Editado por Henrique Guilhon
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