O Fiel Católico
Santo Irineu de Lyon
OS POVOS antigos, de fato, dividiam o céu em diversos níveis ou graus, que variavam, – normalmente de três a dez. – Santo Irineu de Lyon (130–202) deixou registrado que determinada escola gnóstica chegava a proclamar a existência de 365 céus (cf. Adversus Haereses 1,24,3). E sabemos que outras linhas filosófico-religiosas chegaram a pregar a existência de 900 céus(!).
São Paulo Apóstolo, – que escrevia inspirado pelo Espírito Santo, – afirmou ter sido arrebatado ao Terceiro Céu, em sua segunda epístola aos coríntios (2Cor12,2), estando assim biblicamente comprovado que existe mais do que um ou dois Céus.
São Tomás de Aquino, por sua vez, tentou também demonstrar a existência de mais que um céu em sua Suma Teológica (Ia,q.68,a.4 e II-IIae,q.175,aa.1-6), baseando-se nas Sagradas Escrituras e também em São João Damasceno, Rábano e Santo Agostinho.
Em especial, o escritor Dante Aligheri parece crer na existência de diversos Céus, propondo um esquema celeste composto por dez Céus em sua obra cássica "A Divina Comédia".
Não obstante o silêncio do Antigo Testamento (que neste estudo só pode ser empregado implícita e precariamente), a tradição judaica especulava a existência de três, cinco, sete ou dez Céus, segundo diversos rabinos. É interessante notar, neste ponto, que no AT, em hebraico, o termo "Céu" é sempre empregado no plural (=Céus, Shamayim), enquanto que aSeptuaginta (tradução grega do AT hebraico) e o Novo Testamento usam o termo às vezes no singular (=Céu,Oupxos) e outras vezes no plural (=Céus, Oupavoi).
Um dos principais esquemas hebraicos (que parece bem desligado da influência pagã dos povos vizinhos) propunha a divisão do Céu em três, a saber:
1. O céu "auronos", "atmosférico" ou "aéreo" (o céu das aves, dos ventos e das nuvens) – cf. texto do Salmo 8 (9);
2. O céu "mesoranios", dito "o firmamento" (o céu das estrelas e dos astros) – cf. textos do Salmo 8 (4) e Deuteronômio 4 (19);
3. O Céu "Eporanios", "superior" ou "Céu dos céus" (a morada de Deus, e possivelmente o Paraíso) – cf. texto do Salmo 115.
Muito embora alguns Padres gregos e latinos distinguissem, como alguns judeus, o "Terceiro Céu" (lugar onde os justos ressuscitados gozarão da Glória) e o Paraíso (lugar onde os justos descansam, aguardando a ressurreição), boa parte dos Santos Padres (inclusive Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) concordam que o Terceiro Céu apontado por São Paulo pode ser identificado com o próprio Paraíso, – em atenção ao que parece declarar o próprio Apóstolo dois versículos depois (em 2Cor 12,4), – tendo em vista que este seria o lugar onde os justos gozariam da felicidade e da companhia de Deus (Gênesis 2-3; Ezequiel 28,13-15; Mateus 25,46; Lucas 23,43), ou seja, onde se constituía, por excelência, a "Morada dos bem-aventurados junto a Deus".
Mesmo assim, não é possível determinar com certeza absoluta se o cristão São Paulo, nesta passagem, estava fazendo uso do esquema judaico de três ou de sete Céus, já que este último esquema tradicionalmente situava o Paraíso no Terceiro Céu, tornando-se compatível com o versículo 4. A propósito, sendo São Paulo um ex-fariseu (cf. Atos 23,6), não seria de se estranhar que estivesse empregando o esquema de sete Céus, pois era de fato o mais difundido entre os judeus do seu tempo, compreendendo cada céu como um diferente grau de glória experimentado pelos bem-aventurados.
São Paulo Apóstolo por
Bartolomeo Montagna
Por outro lado, se Paulo estiver aqui se referindo ao esquema de três céus, estará afirmando claramente ter sido arrebatado ao "mais alto dos Céus", isto é, à própria Morada de Deus e dos anjos e justos bem-aventurados (o que, salvo melhor interpretação, parece corresponder melhor ao teor de 2Coríntios 12,4, que fala de 'Paraíso' e, ao mesmo tempo, de 'palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir'; de outra forma, o arrebatamento de São Paulo ainda o situaria muito distante de Deus).
Convém recordar que os esquemas que adotavam ou adotam mais que três céus geralmente estavam ou estão impregnados de cultura pagã, gnóstica e/ou esotérica. O próprio Santo Irineu, acima citado, registra uma outra doutrina gnóstica que dividia o Céu em sete e possuía uma estranhíssima "explicação" (situando, contudo, o Paraíso no quarto Céu):
"Dizem que o Demiurgo se tornou Pai e Deus dos seres exteriores ao Pleroma, visto que era o Autor de todos os seres psíquicos e hílicos. Com efeito, ele separou uma da outra estas duas substâncias confusas e de incorporais fê-las corporais; fez os seres celestes e terrestres e tornou-se Demiurgo dos psíquicos e dos hílicos, dos da direita e dos da esquerda, dos leves e dos pesados, dos que vão para o alto e dos que vão para baixo. Fez sete céus sobre os quais -dizem - está o Demiurgo. É por isso que o chamam Hebdômada e a Mãe Acamot denominam Ogdôada, porque conserva o número da primitiva e primária Ogdôada do Pleroma. Segundo eles os sete céus são de natureza inteligente: supõem que sejam Anjos e o próprio Demiurgo um Anjo semelhante a um Deus, assim como o paraíso situado sobre o terceiro céu é, pela sua virtude, o quarto Arcanjo e que Adão recebeu dele alguma coisa quando esteve ali" (Contra as Heresias 1,5,2).
No caso dos judeus em específico, verifica-se que a tradição dos "sete Céus" encontra-se apoiada por escritos apócrifos, como o Livro de Henoc Eslavo, o Apocalipse de Baruc e o Testamento dos Doze Patriarcas (que foram, entretanto, rejeitados pelo Sínodo de Jâmnia, o qual definiu o cânon bíblico dos fariseus no século I dC), além de outras fontes que podem muito provavelmente ter sofrido influência da cultura pagã persa e babilônica, – que professavam originalmente a crença nos sete Céus, – durante o período de Cativeiro.
Talvez em razão da "antiguidade" dessa tradição judaica, acabou sendo "importada" ao islamismo (v. Alcorão, Sura 41,12) e para alguns círculos cristãos, como o de Santo Irineu, que em sua obra "Demonstração da Pregação Apostólica" escreveu, no capítulo 9:
"Este mundo é rodeado por sete Céus, nos quais habitam inúmeras potências, anjos e arcanjos, que asseguram um culto a Deus todo-poderoso e criador do Universo. Não porque tenha necessidade deles, mas para que não estejam, ao menos, sem fazer nada, como inúteis e malditos. Por isso, é múltipla a presença interior do Espírito de Deus e o profeta Isaías a enumera em sete formas de ministério, que descansaram no Filho de Deus, a saber, o Verbo, em sua vinda humana. De fato, disse: 'Sobre Ele pousará o Espírito de Deus, Espírito de sabedoria e inteligência, Espírito de conselho e fortaleza, [Espírito de ciência] e piedade; lhe conquistará o Espírito do temor de Deus' (Is. 11,2-3).
O primeiro céu, pois, a partir do alto, que contém os restantes, é a sabedoria; o segundo é a inteligência; o terceiro é o conselho; o quarto, em linha descendente, é a fortaleza; o quinto é a ciência; o sexto é a piedade; o sétimo, que corresponde ao nosso firmamento, está repleto de temor deste Espírito que ilumina os céus. Daí Moisés adotar o modelo do candelabro de sete braços, que arde ininterruptamente no Santuário. De fato, organizou o culto segundo este esquema celeste, com o que lhe havia apontado o Verbo: 'Te ajustarás ao modelo que te foi mostrado na montanha' (Ex. 25,40)."
Porém, o que faz aqui Santo Ireneu é simplesmente interpretar alegoricamente o conceito de "Sete Céus" da tradição farisaica, moldando-o ao conceito judaico-cristão dos "Sete Dons do Espírito Santo", atribuindo para cada Céu um dom. Portanto, mais que afirmar a existência real de Sete Céus, parece que Irineu quer inculcar os dons do Espírito Divino. Isto fica ainda mais patente quando descobrimos como a "doutrina dos sete Céus" do judaísmo veio a se desenvolver posteriormente. Abaixo, um pequeno reflexo extraído do "Livro do Esplendor", o qual é uma espécie de resumo da Cabala judaica:
"E Deus criou sete Céus acima e sete terras abaixo, sete oceanos e sete rios, sete dias e sete semanas, sete anos e sete vezes sete anos, e os sete mil anos de duração do mundo. E cada um dos sete céus acima tem suas estrelas, seus corpos astrais e seus sóis. Cada um tem sua hierarquia, com poder de executar a vontade soberana. E os que servem são diferentes em cada céu: em alguns, os servos têm seis asas; em outros, quatro asas. Em alguns, têm seis faces; em outros, duas faces. Alguns são feitos de fogos; alguns de água; e alguns de ar. E todos os céus estão colocados uns dentro de outros, como as folhas da cebola. Todos obedecem a palavra do Criador, pois acima de todos está Deus - bendito seja Ele!
E cada um dos sete céus tem suas estrelas fixas e suas estrelas móveis. Levaria cem anos para percorrer andando cada céu. E a altura de cada um é cinco vezes maior que sua superfície; e a distância que separa um céu de outro levaria quinhentos anos para percorrê-la. E por cima de todos eles encontra-se o céu Araboth, o mais alto, cuja superfície levaria mil e quinhentos anos para percorrê-la e sua altura exatamente outro tanto. A luz do Araboth é tão forte que ilumina todos os céus. Acima do Araboth encontra-se o céu da Fera Sagrada. Uma garra da pata da Fera Sagrada é tão grande quanto sete vezes a distância que existe entre a terra e o céu. É como um cristal ígneo. Aqui se encontram as legiões da direita e da esquerda.
Em cada céu existe um governante, que governa a terra e o mundo. Apenas a Terra Santa não é governada por qualquer destes governantes, mas apenas pelo próprio Deus. E o poder que emana de cada um deles é atraído do céu para a terra, pois cada governante está investido a partir do alto com o poder que é dado ao mundo de baixo. No meio de todos os céus existe uma porta chamada Gabillon, sob a qual se encontram setenta outras portas, protegidas por setenta chefes, de onde sai um raio de luz equivalente a duas mil lâmpadas.
Nosso mundo forma o centro do mundo celeste. É cercado por portas que conduzem aos reinos superiores. Em cada porta se encontram legiões de anjos. Estes anjos são alimentados por uma imensa árvore invisível, já que sua luz é oculta pelos ramos. Este mundo pode exercer seu poder apenas quando as sombras da árvore o cobrem e quando todas as portas que se comunicam com o mundo superior estão fechadas. Quando os sinais de louvor se elevam a partir da garganta do homem, duas portas se abrem, uma ao norte e outra ao sul, e a chama celestial desce até a terra e envia sua luz em seis direções. Se todas as portas do mundo não estivessem protegidas pelos anjos, os demônios teriam entrado e o teriam destruído há muito tempo. Porém, quando se elevam ao céu os hinos de louvor, o próprio Deus desce até a terra e fortalece o mundo com sua divina presença.
Quando Deus quis criar todas as coisas, Ele começou criando algo que era por sua vez macho e fêmea; e a estes, por sua vez, Ele os fez dependentes de alguma outra forma que, por sua vez, é macho e fêmea. E a sabedoria (chochma), que é a primeira sephira depois da coroa (keter), foi manifestada pelo Criador e brilha a forma de ambos, macho e fêmea. E quando a sabedoria se tornou manifesta, produziu a inteligência (binah). E novamente temos macho e fêmea: a sabedoria é o pai; a inteligência, a mãe; e estes são os dois pratos da balança. Por causa deles, tudo se manifesta na forma de macho e fêmea. Sem a sabedoria não haveria princípio algum, já que a sabedoria é o pai dos pais, a origem de todas as coisas. Desta união nasce a fé e se estende ao mundo. A binah se produz pelas duas letras do nome de Deus: Yod, Heh.
Assim, a binah é realmente Ben-Yah, Filho de Deus, o qual é a perfeição de tudo o que existe. Quando o Pai, a Mãe e o Filho (que é a misericórdia, chesed) estão juntos, ocorre a síntese perfeita. E quando eles estão juntos, a filha (que é o rigor, gebourah) está também com eles. Porém, sabeis que isto é o resumo de tudo o que ouvistes: que tudo no mundo inferior foi feito à imagem do mundo superior. Tudo o que existe no mundo superior nos parece aqui como que uma pintura. Tudo é uno e a mesma coisa" (Sepher-ho Zohar).
Como se vê, há aqui uma forte tendência para a gnose e para o esoterismo, afastando-se radicalmente das Sagradas Escrituras e denunciando, em especial, sua total incompatibilidade com a fé cristã.
Considerando tudo isto, concluímos que embora possamos falar de "Céu" no plural (indicando a existência de vários Céus) ou no singular (para apontar o Céu inteiro, incluindo suas prováveis divisões), não existem fontes seguras ou de reconhecida autoridade – apostólica ou eclesiástica – que nos obriguem ou nos autorizem a defender a existência dos "sete Céus" ou de qualquer outro número que ultrapasse o três. – Embora, evidentemente, não nos sejam dados a conhecer todos os mistérios daquilo que já nos Céus, como são e quantos são, assim como não podemos ainda conhecer perenemente toda a Glória divina.
Site: O Fiel Católico
Editado por Henrique Guilhon
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