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Fides, si non cogitatur, nulla est.
(A fé, sem a razão, é nula.)
Santo Agostinho, 354-430 d.C.
São muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que defendem que a Igreja Católica Apostólica Romana propaga o obscurantismo e impede o desenvolvimento científico. Recentemente, esta acusação tem sido feita com maior freqüência devido às condenações pela Igreja ao uso de células-tronco retiradas de embriões humanos e à terapia transgênica. A Igreja, se bem que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das coisas humanas, a fonte de tantas e tais vantagens, que as não poderia proporcionar mais numerosas e maiores mesmo quando tivesse sido fundada sobretudo e diretamente em mira a segurar a felicidade desta vida [i]. Esta afirmação poderia ser demonstrada de diversas maneiras, em particular, este artigo traz argumentos que mostram a participação fundamental da Igreja na institucionalização e organização da Universidade, instituição que tem sido, reconhecidamente, uma das criações mais fecundas do Ocidente medieval, na qual os doutores escolásticos transmitiram o amor à verdade, que precisava ser descoberta onde estivesse, e no desenvolvimento científico, onde numerosos integrantes do corpo eclesiástico deram significativas contribuições.
A Universidade medieval não tem precedentes históricos tanto por sua estrutura institucional quanto por seu papel social e intelectual [ii], [iii]. Poucas foram as escolas que se avizinharam da instituição universitária. É verdade que Platão traçou um programa de formação intelectual no Livro VII de sua República. Nessa República ideal, Platão supõe um Estado que patrocine e controle os estudos, mas na realidade, nenhum Estado concretizou, de fato, essa aspiração. No mundo helênico aparecem escolas públicas, mas todas isoladas. Em Roma, somente Adriano pensou estabelecer um Ateneu que se parecia muito a uma Universidade. Esse projeto, entretanto, somente se realizou e, assim mesmo, efemeramente, no tempo de Cassiodoro e do Papa Agapito I no século VI [iii].
As primeiras Universidades apareceram em Bolonha, Paris, Montpellier e Oxford nos primeiros anos do século XIII. Derivadas de escolas preexistentes, para além da diversidade das instituições, elas tinham em comum serem organismos autônomos de natureza corporativa [iv]. Neste aspecto, foi principalmente do papado, representado pelos grandes papas teólogos e canonistas da primeira metade do século XIII, que o apoio foi decisivo [ii]. Em todos os lugares o papado garantiu a autonomia universitária. Em 1214 foram outorgados os privilégios pontificais da Universidade de Oxford. Em Montpellier, onde prossegue o desenvolvimento contínuo das escolas de medicina desde os anos de 1130, a transformação em universidade foi conseguida em 1220 graças aos estatutos outorgados por um legado pontifical. Ademais, um legado pontifical outorgou à jovem universitas magistrorum et scolarium Parisiensium seus primeiros estatutos, confirmados solenemente pela bula pontifical Parens Scientiarum, de 1231 [ii].
Ser autônomo significava ser mestre de seu recrutamento, poder dotar-se de estatuto, poder impor a seus membros o respeito a uma determinada disciplina coletiva e a regras de cooperação mútua, poder, enfim, organizar livremente aquilo que era a própria razão de ser da cooperação universitária, quer dizer, o ensino, os programas, a duração dos estudos, as modalidades dos exames que sancionavam esses estudos e a colação dos graus que coroavam o êxito nos ditos exames [iv]. O título de doctor ou a licentia docendi, conferido pelas universidades medievais, não tem antecedente na Antigüidade clássica [iii].
A gratuidade do ensino e dos graus era um princípio sagrado no século XIII [iii]. As primeiras derrogações vieram de Oxford, onde para fazer viver os mestres, uma ajuda monetária foi consentida; em Paris, em 1281, o Papa Martinho IV sancionou a existência de uma caixa comum, para a qual os escolares contribuíam semanalmente.
O leque social nos meios universitários era extremamente largo [v]. Os nobres nunca foram muito numerosos nas universidades medievais; freqüentemente menos de 5% e, no máximo, 10 a 15%, em casos excepcionais. Os estudos universitários não condiziam ainda nem ao tipo de cultura nem ao tipo de carreira a que esse grupo social se dedicava preferencialmente. É bem provável que o maior número dos estudantes e dos graduados viesse das “classes médias”, sobretudo urbanas (notários, comerciantes, artesãos abastados etc) [ii]. Muitas matrículas assinalam a existência de pauperes studentes, reconhecíveis por serem mais ou menos dispensados do pagamento dos direitos universitários. Eram muito numerosos nas universidades alemãs. De uma maneira geral, os estudantes pobres eram particularmente numerosos nas universidades em que as faculdades de Artes haviam permanecido importantes e nas com característica eclesiástica. Os estudos de artes eram relativamente breves, pouco dispendiosos e podiam dar acesso a ofícios intelectuais como o de mestre-escola. Do papado, os universitários haviam também recebido privilégios apreciáveis em matéria beneficial: podiam receber benefícios eclesiásticos e gozar de seus rendimentos durante cinco ou sete anos sem residir no local e sem receber as ordens exigidas [v]. O Chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (1363 – 1429), filho primogênito de uma família camponesa de doze filhos e nascido na pequena Vila Ardennais, havia começado seus estudos no mosteiro Saint-Remi em Reims. Ainda no século XIX, o monge agostiniano Gregor Mendel (1822–1884), cujo trabalho explicou a hereditariedade e fundou a Genética, era filho de camponeses pobres em Brunn, Morávia, para citar integrantes do corpo eclesiástico que deram significativas contribuições ao desenvolvimento científico.
Além disso, pelo fato do estatuto jurídico dos estudantes e dos mestres torná-los, por princípio, privilegiados, tornar-se estudante significava poder furtar-se ao imposto e às formas mais rigorosas da justiça ordinária, significava poder pleitear proventos dos benefícios eclesiásticos sem obrigação de residência e tomar assento sob a salvaguarda das mais altas autoridades, laicas ou eclesiásticas [iv].
Em todas as faculdades, o ensino era dominado por dois tipos fundamentais de exercícios: a aula (lectio) e o debate (disputatio). A primeira visava a fazer conhecer ao estudante as “autoridades” e, através delas, permitir-lhe dominar o conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para o professor, o meio de aprofundar mais livremente certas questões do que num comentário de texto e, para o estudante, a ocasião de pôr em prática os princípios da Dialética e de avaliar a precisão de seu raciocínio [v].
As aulas distinguiam-se entre ordinárias e extraordinárias. As aulas ordinárias eram dadas pelos próprios mestres sobre os livros importantes do programa, no início da manhã; as aulas extraordinárias, dadas por bacharéis, tinham lugar no final da manhã ou à tarde. Nos dois casos, o método era o mesmo: o professor, após uma aula de introdução, lia o texto a ser explicado, interrompendo-se em alguns trechos para um comentário; os estudantes acompanhavam em seu próprio exemplar do texto e tomavam notas.
O texto que se analisa é designado por lectio. Como mostra Pacheco [vi], a busca do entendimento do texto, que se escolhe dentre a já rica pluralidade de fontes e autores, cristãos ou não, inclui a tentativa da descoberta da intentio auctoris e o comentário analítico rigoroso. Acrescenta Pinekaers [vii], a escolástica, estruturada a partir da dimensão interpretativa do texto, assume características especiais: é abstrata, como resultado de um pensamento liberto das conotações acidentais; é analítica, pois a palavra significa a essência; é aistórica, situando-se ao nível do essencial, num presente independente do passado e do futuro; é impessoal, já que nunca usa a primeira pessoa; nunca é subjetiva, mas sempre aponta para o universal.
Os debates, por sua vez, eram um tipo de exercício característico da universidade medieval e constituíam a parte mais significativa do ensino nela praticado. Como salienta Pieper [viii]:
“Houve na universidade medieval a instituição regular da “disputatio”, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à consideração temática sob um ângulo universal”.
Nas palavras de São Tomás de Aquino, a existência dos debates explicava-se porque:
“Assim como um juiz não pode sentenciar em um Juízo até haver escutado as duas partes, assim o homem que estuda a filosofia julga melhor se observa o choque das idéias, como o de dois adversários em luta” [iii].
Durante suas duas estadas em Paris, São Tomás organizou pelo menos 528 debates, ou seja, mais ou menos dois por semana [v]. Não era suficiente escutar a exposição das aulas por um mestre; era essencial que as idéias se examinassem criticamente nos debates [ix]. Os mais freqüentes eram os “debates ordinários”: o mestre escolhia um tema “quaestio”, presidia a sessão e encarregava um de seus bacharéis de apresentar a “questão” e de responder às objeções dos discípulos, pronto para ajudá-lo ou retomá-lo em caso de necessidade; o público podia compreender, além dos estudantes e dos bacharéis de aula do mestre, estranhos vindos de outras classes. No dia seguinte ao do debate, o mestre apresentava a síntese da discussão e a esclarecia. Uma ou duas vezes por ano, cada mestre devia também organizar um debate de quolibet, onde qualquer tema podia ser abordado e ao qual assistiam todos os membros da faculdade.
As leituras, comentários de textos e a participação nos debates habituavam os estudantes a se exprimir tanto em latim quanto em vernáculo e a posicionar-se em público, a enfrentar e, se possível, vencer, pela argumentação, os eventuais adversários. Seus estudos de lógica e de retórica lhes teriam dado a arte do raciocínio correto e da demonstração convincente. Um longo exercício da memória lhes permitia convocar, sem se referir a notas escritas, múltiplas citações de autoridades que fundamentavam seu saber. Junte-se a isso o fato de, na maior parte das universidades, os estudantes e os jovens mestres em artes poderem tomar a palavra na deliberação das diversas assembléias e conselhos, exercer funções eletivas, representar a universidade diante de autoridades exteriores. Pela importância dada a todas essas atividades, a universidade certamente contribuiu para a formação de homens de saber, dotando-os, não apenas de uma certa bagagem intelectual, mas de saber-fazer e de desembaraço social e politicamente úteis [iv].
Ademais, a Idade Média era atenta às finalidades sociais da universidade. Com efeito, repugnava-se, então, não apenas a idéia de uma cultura desinteressada, mas, também, aquela de um saber cujo detentor utilizasse a seu modo e exclusivamente para seu próprio benefício pessoal [iv]. “Deve-se aprender apenas para a própria edificação ou para ser útil aos outros; o saber pelo saber é apenas uma vergonhosa curiosidade” [x], já havia dito São Bernardo (1090-1153).
Há que se distinguir desde logo o século XIV, que, em muitos aspectos, especialmente em Paris e Oxford, aparece como um prolongamento do século XIII e o século XV onde as dificuldades sensivelmente se acumulam sobre as instituições devido às mudanças ligadas à emergência do Estado moderno [iv]. As universidades modernas, a partir da Renascença, são criações de príncipes e do Estado, que as absorve cada vez mais [ii], [xi]. Os estatutos que elas receberam desde sua fundação, sempre as caracterizando como instituições autônomas, deixam largas possibilidades de controle e de intervenção aos poderes externos e seus representantes. A mais óbvia foi freqüentemente que os professores (ou pelo menos alguns dentre eles) seriam, dali por diante, pagos pelo príncipe que, como retorno, exerceria o direito de responsabilizar-se por suas nomeações. No século XV, vê-se, na França, onde o reforço do poder real foi particularmente precoce, as velhas universidades (Paris, Orléans, Toulouse) passarem para a tutela de reis, de seus Parlamentos e de seus oficiais. Agora, as universidades estavam no quadro das instituições nacionais. O lento abandono de determinados tipos de exercícios (por exemplo, os debates) é, sobretudo no século XV, uma realidade incontestável [iv]. Talvez o mais inquietante seja o fato de os graus parecerem ter sido cada vez mais fáceis de serem obtidos, a julgar-se pelas taxas de êxito crescente que se percebe. De 1600 a 1800, as taxas de êxito passam em Oxford, (bacharelado em Artes) de 35% para 58%; em Franeker (Países Baixos) de 6% para 71% [ii].
O absenteísmo professoral, associado à falta de assiduidade dos alunos, esvaziava aulas e disputas. Para tomar o caso da França, se as principais universidades – Paris, Toulouse ou Montpellier – preservavam um determinado nível de exigência, pequenas universidades provincianas – Avignon, Orange, Orléans, Nantes, Caen, Reims – especializavam-se vergonhosamente na venda de graus a preços de liquidação e sem exame sério. As dispensas de todo tipo eram facilmente conseguidas. O próprio Estado resignava-se a isso, e tanto que, em 1682, autorizou os alunos de Direito com mais de 24 anos, “em virtude da idade”, a conseguir sua licença em seis meses (ao invés dos cinco anos exigidos) [xii].
Na Idade Clássica, até o final do século XVIII, a atividade das Universidades não mais resume toda a vida intelectual. Os reformadores do Iluminismo advogam a sua extinção como resíduos de uma inútil tradição medieval e propunham substituí-las por escolas especializadas [iii]. A Universidade, tão cara a Idade Média, sofria agora o perigo dos chamados “sábios” Iluministas. Os princípios defendidos nessa época são de que o ensino dever-se-ia ficar adstrito a pequenos grupos privilegiados. Voltaire, escrevendo a La Chalotais , concordava em que este tinha razão de proscrever os estudos entre os lavradores. E, numa carta a Damilaville, no ano de 1766, dizia claramente que seria conveniente que o povo fosse guiado e não instruído, afirmando: “Parece-me essencial que haja pobres ignorantes. ... Não é preciso instruir o artesão, mas sim o burguês. ... Se o povo se mete a raciocinar, tudo estará perdido” [xiii].
Além de instituir e fomentar o ensino universitário, a Igreja Católica desenvolveu e difundiu o saber através de seus clérigos. Integrantes do corpo eclesiástico formaram cientistas notórios como Descartes, que estudou no Colégio Jesuíta La Flèche; desenvolveram novas teorias; inventaram máquinas, aparatos; escreveram tratados, estudos, manuais; demonstraram novos princípios em diversos campos da Ciência e das Artes e levaram suas descobertas ao Oriente e às Américas.
A Idade Média viu surgir teorias valorosas, cujos méritos, muitas vezes, foram outorgados a Idade Moderna. A partir de estudos de tratados medievais sobre dinâmica e cinemática, Pierre Duhem argumenta que as idéias essenciais dos princípios básicos da física de Galileu (1564–1642) já estavam presentes no século XIV. A teoria do ímpetus de Jean Buridan (?1300–1358) é vista como um presságio da lei de inércia, que está no cerne da Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, e as teses de Nicole Oresme (1323–1382) como uma antecipação da lei da queda dos corpos de Galileu e da geometria analítica de Descartes [xiv].
A participação significativa de integrantes do corpo eclesiástico no desenvolvimento científico foi reconhecida por cientistas notórios. O próprio Galileu, quando em 1611 esteve com Jesuítas em Roma, escreveu a um de seus amigos:
“Estive com os padres Jesuítas e me entretive durante muito tempo com o padre Clavius, com dois outros sacerdotes muito versados na nossa ciência e com os seus alunos também...percebi que eles verificaram a existência real dos novos planetas e que, há dois meses, eles não cessam as suas observações; nós as comparamos às minhas e umas concordam perfeitamente com as outras” [xv].
O trabalho do P. Leon Battista Alberti (1404-1472) é central no desenvolvimento da perspectiva. A palavra “perspectiva” designava, na Idade Média, a ciência da óptica (perspectiva communis). No seu tratado “Sobre a Pintura” de 1435, P. Alberti expõe a perspectiva expressamente no plano matemático e se baseia em conhecimentos sólidos de geometria e óptica: é pela análise dos triângulos e outras figuras formadas pelos raios visuais que convém estudar a representação do espaço. Daí a definição: “o quadro é uma interseção plana da pirâmide visual”. A perspectiva lhe fornece, em particular, os meios de “geometrizar” corretamente as projeções mais importantes das linhas retas (verticais, ortogonais ao plano do quadro etc) [xvi].
Para a história do pensamento científico, o fato é significativo. Como salienta Panofsky [xvii] “não é um exagero afirmar que, utilizado desta maneira, esse motivo (...) representa de algum modo o primeiro exemplo de um sistema de coordenadas que, na esfera da concretude artística, torna visível materialmente o ‘espaço sistemático’ moderno, antes mesmo que o pensamento abstrato matemático o tivesse postulado”. P. Alberti sintetizou e conceituou essas conquistas.
Na Idade Média essa área de estudos era muito ativa; através do que hoje veríamos como passos vacilantes, preparava-se uma síntese cada vez mais ajustada entre a análise geométrica e o estudo da visão dos objetos. De modo direto ou indireto, P. Alberti e seus contemporâneos conheceram esta tradição medieval. Não só o tratado de Jonh Pecham teve ampla difusão, como Blaise de Parma escrevera, por volta de 1390, um tratado de óptica (Quaestiones Perspectivae). Mais ainda, na década de 1420 circulara um tratado, Della Prospettiva, cujo autor foi Paolo Toscanelli. Como conclui Pierre Thuillier 16: “as inovações do século XV devem ser compreendidas com relação a um plano de fundo teórico muito rico. É impossível, em todo caso, aceitar-se a lenda (ainda muito difundida) do ‘obscurantismo medieval’”.
Contudo, o primeiro corpo de católicos eruditos que se tornou preeminente em ciências seculares foram os Jesuítas. A Sociedade de Jesus foi fundada em 1540 por Santo Inácio de Loyola. Os ‘homens do papa’, como eram conhecidos pela sua defesa e propagação da autoridade e do ensinamento papal, deram expressivas contribuições a inúmeras áreas do saber.
Foi o P. Christopher Scheiner (1573–1650), na sua obra Oculus (1619), o primeiro a provar a importância fundamental da retina na visão. Em 1630 publicou Rosa Ursina, sua principal obra. Nestes livros, P. Scheiner descreve algumas de suas descobertas e experimentos tais como a determinação do raio de curvatura da córnea e a descoberta da saída nasal do nervo óptico [xviii], [xix]. Este mesmo padre fornecera provas concludentes sobre a faculdade de acomodação do olho, e se celebrizara pela descoberta das manchas solares e pela invenção do pantógrafo [xx]. Outro jesuíta, o P. Francesco Lana-Terzi (1631–1687) criara um alfabeto para surdos-mudos e um método de leitura para cegos.
Na Matemática, o trabalho do P. Jesuíta belga Gregory Saint Vincent (1584–1667) Opus Geometricum Quadraturae Circuli et Sectionum Coni (1647) fez com que Leibniz o reconhecesse, ao lado de Fermat e Descartes, como um dos que estabeleceram as bases da geometria analítica [xxi]. Pode-se citar também o P. Andrea Tacquet (1612–1660) cujas obras, dentre elas seu principal trabalho Cylindricorum et Annularium (1651), influenciaram Pascal. Neste mesmo século, o P. Girolamo Saccheri (1667–1733) lançava os fundamentos da primeira geometria não euclidiana em Euclides ab Omni Naevo Vindicatus (1733), obra que influenciou Riemann, Lobachevsky, Bolyai e Gauss.
O P. Vincenzo Riccati (1707–1775), por sua vez, estudou equações diferenciais e integrais. Descobridor das funções hiperbólicas, ele encontrou as fórmulas padrão de adição para estas funções e sua relação com a função exponencial. Lambert é freqüentemente citado como o primeiro a introduzir as funções hiperbólicas, contudo, sabe-se que ele não o fez até 1770, enquanto o trabalho do P. Riccati foi publicado entre 1757 e 1767. Seu livro Institutiones é reconhecido como o primeiro tratado extensivo sobre cálculo integral.
Na Física, foram importantes as contribuições do P. Jesuíta Francesco Grimaldi (1613–1663). P. Grimaldi descobriu a difração da luz e expôs a teoria ondulatória de sua propagação na obra Physicomathesis de Lumine (1666). Newton trata das proposições sobre difração da luz de Grimaldi na Parte III de sua Opticks (1704).
Não se deve deixar de mencionar as contribuições do P. Jesuíta Rogério Boscovich (1711–1787) ao desenvolvimento teórico sobre a estrutura da matéria, expostas em sua Theoria Philosophae Naturalis, a qual traz esboços da teoria sobre quarks [xxii]. Nas palavras de Thomson [xxiii]:
“A natureza da coesão foi mais adequadamente explicada por Boscovich do que qualquer outro filósofo. Esta é a mais bela e satisfatória parte de sua teoria”.
Também foram importantes as contribuições dos Jesuítas à Astronomia e à Geofísica. Desde 1824 até hoje, 73 observatórios ao redor do mundo são operados por Jesuítas. Dentre os mais importantes e mais conhecidos estão o do Collegio Romano (Roma), Stonyhurst (Inglaterra), Kalocsa (Hungria), Ebro (Espanha), Georgetown (Washington), Havana (Cuba), Zikawei (China), Manila (Filipinas), Tananarive (Madagascar), Riverview (Austrália) e Calcutá (Índia) [xxiv]. Neste aspecto, não se deve deixar de citar as contribuições do P. Ângelo Secchi (1818–1878), em particular, seus trabalhos sobre classificação espectral de estrelas. Ele foi o primeiro a fazer uso sistemático desta técnica na classificação de estrelas, o que o fez ser chamado de “pai da Astrofísica”. Na Itália, fundou a Sociedade Italiana de Espectroscopistas, dedicada a estudos espectroscópicos do Sol. Destacam-se, do mesmo modo, as contribuições dos Jesuítas à Meteorologia, especialmente no estudo e previsão de furacões tropicais [xxv].
Já no século XX, o P. Jesuíta Georges Lamaître (1894-1966) apresentou as bases da teoria da expansão do Universo em um artigo publicado nos Anais da Sociedade Científica de Bruxelas, em 1927 [xxvi]. Sua teoria foi confirmada em 1964, quando Arno Penzias e Robert Wilson descobriram a radiação de fundo, cuja existência Gamow havia previsto como uma relíquia da explosão inicial. Por seu trabalho, uma comissão internacional lhe outorgou o Prêmio Francqui, em 1934, o qual recebeu das mãos de Einstein.
Tampouco as extraordinárias contribuições dos Jesuítas se limitaram à ciência. Em 1773, contavam com 350 teatros na Europa. Fundaram o primeiro teatro no continente norte-americano – precisamente em Quebec, em 1640. Ensinaram a França a fazer porcelana. O guarda-chuva, a baunilha, o ruibarbo, a camélia e o quinino foram inovações jesuíticas na Europa.
Menos de cem anos depois da fundação da Sociedade de Jesus, os Jesuítas se tornaram os primeiros europeus a penetrarem no Tibet e depois seguirem dali para a China. O P. Jesuíta Matteo Ricci (1552–1610) provou que a Catai de Marco Pólo era idêntica à China, e não um país diferente, e publicou os primeiros mapas da China disponíveis no Ocidente. Na China, este mesmo padre redigiu um tratado de geometria euclidiana em chinês e ensinou-lhes a arte de fabricar relógios de sol. Pelos seus serviços, foi declarado mandarim oficial no palácio do imperador em Pequim. No Japão, o P. Jesuíta português Luis De Almeida fundou, em 1557, o primeiro hospital no Oriente, dentro do qual foi fundada a primeira escola Médico-Cirúrgica [xxvii]. P. Almeida manda construir também um orfanato com vacaria anexa, visando, deste modo, reduzir a mortalidade infantil na região [xxviii].
No Brasil, os Padres Jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta foram exemplos de um prodigioso sacrifício e abnegação a serviço daqueles da recém descoberta Terra de Santa Cruz. Fundaram colégios, ensinaram aos índios a arte de construir moradias com proporção e alinhamento, fazer móveis, plantar e cultivar a terra. Ainda não estava concluída a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda e já a escola estava franqueada aos meninos da nova Cidade do Salvador [xxix]. A criação da escola sempre contemporânea da própria cidade, ou a ela precedendo, como aconteceu em São Paulo, de modo a não se encontrar povoação alguma de certa importância que não tivesse o seu colégio, é um fato característico da missão jesuítica na América Latina.
Foi na escola de Piratininga, inaugurada no dia da Conversão de São Paulo, donde veio ao colégio o nome de São Paulo, derivando-se mais tarde a denominação para a cidade e da cidade para o Estado que P. Anchieta passou, por vezes, noites inteiras a tirar cópias, para os discípulos poderem, a falta de livros, estudar as lições [xxx].
P. Anchieta cultivou com esmero no Brasil as línguas portuguesa e tupi. Deixou-nos sobre esta última a Arte da Língua mais Usada na Costa do Brasil, bem como em latim a Ars Grammatica Linguæ Brasilicæ e o Dictionarium Linguæ Brasilicæ. No mais, a lista de alunos célebres dos Jesuítas no Brasil inclui Gregório de Mattos, Cláudio Manuel da Costa, José Basílio da Gama e P. Antonio Vieira, que, tendo vindo para o Brasil na idade de oito anos, recebeu sua formação literária e científica dos Jesuítas no Colégio de Jesus da Bahia. Também podem ser incluídos os historiadores Francisco de Souza e Pedro Taques, cronista dos bandeirantes, discípulos da Companhia no Rio de Janeiro 29.
Pelo mencionado, a Igreja, no seu magistério, empreendeu-o não somente a salvação das almas e para a felicidade eterna, mas de modo excepcional na esfera das coisas humanas em mira a segurar ainda a felicidade desta vida. Deste modo, por tudo que fez e defende, não se deve obscurecer com afirmações infundadas e distorções históricas absurdas o brilho da contribuição da Igreja Católica ao ensino e ao desenvolvimento científico. Contudo, como reconhece a própria Igreja, esta não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino fundador, “objeto de contradição”; mas, nem por isso deixa de proclamar, com humilde firmeza, a lei moral toda, tanto a natural como a evangélica.
Rogério Côrte Sassonia 11/set./2005.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[xxvii]. Fodstad, H.; Hariz, M. I.; Hirabayashi, H.; Ohye, C.; Barbarian Medicine in Feudal Japan, Neurosurgery2002, 51, 4, 1015.
[xxix]. Cabral, S. J., L. G.; Jesuítas no Brasil (Século XVI), vol. III, Companhia Melhoramentos: São Paulo, 1925, cap. 3.
[xxx]. Cabral, S. J., L. G.; Pátria e Religião, Sta. Rosa: Nictheroy, 1922, p. 8 apud Cabral, S. J., L. G.; Jesuítas no Brasil (Século XVI), vol. III, Companhia Melhoramentos: São Paulo, 1925, cap. 3.
Título Original: Épocas Obscuras?
Foto: Web
Site: Montfort
Editado por Henrique Guilhon
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